– Poema do livro “luto lento” premiado e publicado no Cancioneiro “Amo de Ti”
quarto crescente
vou pintar uma parede de cada cor e encostar-me a cada uma para que cada uma seja o que eu quero construir
mas como só tenho quatro quatro não chega por isso vou lá para fora imaginar paredes para que se façam muros que eu quero cair uns altos e até ao tecto que está a fazer de céu
eu quero pintar o ar como quem pinta paredes para sentir os desafios como um ar que se lhe deu
e vou respirar distâncias para as cheirar mais perto
e vou escalar o areado como quem rasga os dedos e ainda assim sorri porque sobe como quem morre
vou pintar o mundo de uma cor única que são todas
e matizar as pessoas com nuances subtis para que sejam coerentes
mas eu vou ficar transparente para que vejam por mim o que eu não quero que dói muito
só que o ar anda racionado e o homem racionalizado
e dizem-me que o não faça que fique quedo como quem respira só para fazer circular o ar como o polícia que diz do acidente que aqui não há nada para ver
e fecharam-me à chave
e fecharam-me a chave dentro duma gaveta que está lá fora e lá longe
e estou a fazer pequeníssimos quadrados nas paredes do meu quarto para simular a imensidão do mundo
mas não me chega falta-me gente e até pus um anúncio no jornal a pedir gente pequenina em part-time para me inundar as paredes vestidas de quadrados que fazem de muros das casas das pessoas lá fora
e dentro do meu quarto corre bem corre muito bem porque as cores começaram a intrometer-se nas almas umas das outras
e agora nem são quadrados
são manchas que eu nem distingo que eu nem percebo que eu nem sei ao certo
manchas que se misturam como quem nada que viajam como quem corre
como quem escorre do tecto
como quem escorre do chão ao tecto
como quem escorre de fora para dentro
como quem se entranha
como quem se une
como quem se mune de aventuras e segredos que quiseram ser contados para deixarem de existir
e a perfeição do mundo interior é ter as barreiras simples feitas para cair
e a sua única tristeza são as arestas que choram no canto porque separam a mãe do filho e a solidão da aventura
e ao meu quarto só lhe falta ser circular para ser o mundo mas lá fora circula
e um dia hei-de sair para dizer a todos que se espalhem ao comprido e debaixo uns dos outros
como quem ama sem saber como
como quem chama sem saber quem
como quem brinca sem saber a quê
e vou-lhes ensinar a verdadeira linguagem dos afectos que é moldável palpável e daltónica
e o mundo vai ser de uma cor melhor o mundo vai ser de duas cores da minha e da tua
in luto lento, de João Negreiros