quarta-feira, 2 de junho de 2010

HISTÓRIA SEM FIM

Era início de Setembro. As férias de Verão estavam a chegar ao fim. Ela, sentada na borda-d’água, molhava os pés enquanto esperava por ele.
O dia estava quente e abafado. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, num gesto que parecia ser de entrega, enquanto sentia o sol morder-lhe a pele do rosto e do pescoço. Deixou-se ficar assim, imóvel, durante largos minutos até que o som de passos que se aproximavam lhe despertou a atenção. Abriu os olhos. Era ele.

— Somos dois fósforos sem cabeça! — atirou ele.

As metáforas:

— Inúteis!

As que ele atirava sempre como desculpa para não ter de ser ou bruto ou verdadeiro. E ela, habituada, chegara ali, ao fim do Verão. Habituada a que lhe fugisse o sentido daquilo que eram. E agora mais uma metáfora, enguia húmida do abuso dele.

Inúteis! Desperdiçados. O tempo que correra entre terem-se encontrado e agora. Deitado fora, sem vasilhame. Ocorreu-lhe tudo: deixar-se cair no mar, dramática, apelar-lhe à compaixão de quem não saberia viver sem ele. E imaginava-o desesperado, agarrado ao seu corpo inanimado. Bater-lhe, irada, tirar-lhe à chapada as metáforas todas que a enganavam ainda, bater-lhe mais e recuperar o Verão mentiroso que passaram. Ou chorar, desesperada, atirando-lhe incoerentemente tudo o que lhe viesse à cabeça, mentiras desesperadas sobre ele, e ela, que crescessem como ervas na insegurança dele.

Ou levantar-se, assim como faz agora, dizer com a pouca certeza que a voz permite:
— Inúteis!
E corre, deixando-o paralisado de incompreensão — dela e do resto das mulheres — para desaparecer.
— Mas iguais... Fósforos sem cabeça. Inúteis, mas iguais.

Ele senta-se agora no lugar que ela ocupara. O sol mordisca-o agora – ele não escolhe quem mordisca, apenas mordisca. A pele suada reflete harmoniosamente cada particula de luz e ilumina todo aquele ambiente.

Mas ninguém repara. Os sentimentos que ligam aqueles corpos interlaçam-se e formam apenas um. Ela tem medo da reacção dos primos e foge. Aqueles primos que num misto de instinto de protecção e fanfarronice, a controlam e a tentam impedir de sair com ele. Mas, na verdade, para eles nunca houve barreiras. Inúteis, mas fiéis, construíram um mundo de fantasia só seu.

E ali, à borda-d’água, ele revive agora os momentos que passaram juntos, tentando perceber onde errou, e o que fez para fazê-la fugir dos seus braços. Uma brisa suave rodeia-o, de mansinho, à medida que uma lágrima teimosa cai.

De repente, um ruído ensurdecedor perturba os seus pensamentos…

E ele reconhece. Esse zumbido ruidoso, veloz e circular: música de feira repetida e distorcida pelas voltas que dá o Carrossel.
Dentro da cabeça caída para trás no corpo que ele quer cansado e confundido.
Uma volta, duas voltas, e terceira volta: o cérebro anestesiado dos sentidos que já não são capazes de significar na mistura viciada das formas arrastadas da realidade...
O mundo derretido ou esticado, além da compreensão, é agora aquela mancha abstracta de nada ou daquilo que quisermos. Naquela distorção pode ser aquilo que escolhemos – e nós também podemos fingir que somos diferentes – ele queria dizer: indiferente ao mal que nos fizeste!
Essa é a utilidade do carrossel, do aparelho-metáfora que ele construía sempre para se esquecer instantaneamente. Enganar o veneno da alma empanturrando, com veneno, o corpo: A Carne não me mente como tu.
Uma volta, duas voltas, e terceira volta: quem és tu?
A volta fatal é a última. Quando a roda pára.
Saiu enjoado, distorcido de si próprio, justificando – este não sou eu! – e os pés balbuciam trôpegos ao cérebro ou ao estado da sua alma:
– Maldito carrossel circular que, de tantas voltas, nos deixa no momento exacto que quisemos esquecer: Inútil.
"Um carrocel que enreda a mente numa teia de torpor para depois a desfazer.

Inútil.

A palavra assombrava-o e perseguia-o para onde quer que fosse, assombrá-lo-ia e persegui-lo-ia para onde quer que fosse. Tinha sido um Verão, tinha sido uma metáfora, tinha sido uma mulher. O que importava isso agora? O que lhe devia importar agora? Não sabia.

Inútil.

“Um fósforo sem cabeça é um mero palito”, pensou, sorrindo.
Porque tinha de ser assim, todo este drama? Porque tinha ela de o deixar a pensar nos eternos erros que podia ter cometido? Porque tinha ele de a deixar a correr com as lágrimas cristalinas a caírem pelo chão negro de asfalto?

Inútil, tudo isto era inútil.

Ele lembrava-se do primeiro momento em que sentiu o fim. Estava deitado na relva húmida, olhando para um céu longínquo. Ela estava muito longe, e ele estava só. Nada se igualava àquele momento platónico em que vira o Verão. E, ao encará-lo de frente, percebeu que o fim viria cedo demais.

Inútil, como um fósforo ardido."

(continue)